quarta-feira, 17 de março de 2010

Tenho tanto sentimento¹



Tenho tanto sentimento
Que sou completa de alegrias e tristezas
Se um lado de mim sorri ilusões
O outro lado chora certezas

Tenho tanto sentimento
Que circundo o mundo-menino com minhas mãos
E contemplo com olhos maternos
Seus rompantes de Paz e de Guerra

Tenho tanto sentimento
Que trago no peito um pouco de tudo
Da criança que nasce ao velho que morre
Do grito da luz, ao silêncio do escuro

Tenho tanto sentimento
Que não sou mais eu, e como rocha,
Sou apenas fragmento de tudo que passa
Moldada com paciência pelo tempo

Tenho tanto sentimento
Que em minha alma ainda ecoam
 os gritos de dor e de conquista
dos meus ancestrais multicolores

Tenho tanto sentimento
Que me confundo com o mundo
e com cores, e gentes e plantas e cheiros
E ao final, entrego-me inerte e inteira
Para sentir eternamente a noite.





¹ Nome do poema de Fernando Pessoa.

domingo, 14 de março de 2010

Nostalgia

Naquela tarde, saiu sem maiores pretensões. Arrumou o cabelo como de costume, vestiu um jeans velho e colocou aquela blusa preta que tanto gosta. Calçou o tênis surrado, passou um batom, pegou a bolsa e saiu. A tarde fria, iluminada timidamente por uns poucos raios de sol, trazia-lhe saudades de uns tempos alegres, em companhia de pais e irmãos, na velha chácara onde morou boa parte de sua vida. Olhava sem prestar muita atenção para coisas e pessoas que passavam, esboçava um sorriso suave e sincero para uns poucos.

Gracejou com a criancinha que brincava na calçada. Lembrou-se do filho, o único que teve ainda em sua adolescência, fruto de uma ilusão com um homem mais velho e comprometido, que desfez todas as promessas e desapareceu assim que soube da gravidez. Por causa da aventura, nunca recebera o perdão dos pais e o filho agora estava longe e feliz com esposa e filhos, tão longe e tão feliz que nunca tinha tempo para fazer uma visita ou mesmo dar um telefonema.

Andou ainda mais algumas ruas, sentiu no ar um cheiro de bolo e frutas. Costumava fazer bolos e compartilhar segredos quando passava alguns dias na casa da única e verdadeira amiga. Onde estaria ela agora? Depois que completou o colegial, mudou-se para a cidade grande, enviou algumas cartas, mas depois de um tempo calou-se. Boas lembranças. Mais adiante, na esquina, deparou-se com uma velha conhecida e seu tabuleiro de mingaus e cafés. Cumprimentou a senhora intimamente, tomou do mingau de tapioca que tanto gosta e provou mais uma vez o café quente e forte feito pela senhora prendada.

Tudo comum, tudo perfeito naquela tarde tão agradável. Andou por mais um tempo, sentiu no rosto o toque carinhoso e sutil do vento em seu rosto, já tão marcado pelo tempo e pela vida. Pensou um pouco sobre o vento que a tocava: seria o mesmo vento que a tocava em sua juventude, quando caminhava vagamente pelas ruas, com a cabeça cheia de sonhos e desafios, cheia de amores e esperanças? Seria o mesmo vento, seu velho amigo de andanças e devaneios?

Caminhava agora mais devagar, os olhos presos ao chão, um tom sério no semblante. Sentiu uma falta profunda de pessoas e de vidas, estava enfadada de tanta solidão e lembranças difusas. Chegara enfim às margens do Cachoeira, fortalecido pelas chuvas e vingativo por natureza. Contemplou por alguns minutos a inquietação das águas correntes, refletiu sobre sua brevidade: águas que nunca param, seu momento é rápido como um piscar de olhos.

Suspirou profundamente, subiu no parapeito da ponte e, lançando um último olhar sobre a cidade fria e indiferente à sua existência, jogou-se resignada nas águas do rio, afogando junto com o corpo cansado, as tristezas e as saudades de outrora. E o rio, orgulhoso, recebeu com júbilo e fúria àquela oferenda voluntária.

Celly Grapiúna


A revanche do Rio

Em tempos de chuva, o rio costumava a exibir-se. Bastavam apenas algumas horas de água caindo para que logo começasse a ganhar volume e provocar pavor. E em pouco tempo lá estava ele, cheio de movimento e fúria, numa alegria desmedida, vaidosa, arrebatando em sua passagem tudo que encontrava pela frente: gente, plantas, bichos, casas e cacos.

E as mulheres praguejavam lastimosas às suas travessuras , que destruía impiedoso casas e míseros teréns. Os meninos contemplavam curiosos e amedrontados a força do amigo de tantas horas, enquanto os homens se calavam resignados: entendiam a revolta e o orgulho desse velho conhecido. As árvores, em volúpia, debruçavam-se languidamente sobre a virilidade imponente do Rio Cheio, acariciando com suas folhas desejosas as fortes águas que dão vida, celebrando em gozo, Árvores e Rio, o espetáculo da natureza em fúria.

Mas o Rio não se contentava com pouco: enquanto durava o seu estado de graça, esparramava-se por toda a cidade, entrava em cada rua, em cada beco, em cada casa, satisfazendo-se em impor sua presença nos lugares mais protegidos pelas gentes. Naqueles dias era Ele, o Rio, que penetrava o lugar dos homens;  era ele quem entrava sem pedir licença e deixava suas marcas às fuças de quem quisesse ver. E não tinha reza nem choro que o fizesse acalmar: nos dias de sua força, era ele o dono de tudo, era quem ditava as regras.

Enquanto o Rio se deleitava, os homens, acuados, testemunhavam inertes as destruições causadas pelas fortes águas: as plantações, o gado magro, o barraco erguido com tanto sacrifício: tudo sendo levado pelo excomungado do Rio! E com um nó na garganta, juravam as vinganças mais odiosas sobre aquelas águas fortes e indomáveis. Mas o Rio não se importava. Sabia que amanhã seria a vez dos homens. Mas hoje Ele é o Rei. Hoje é a vez do Rio.


FESTA no MORRO


Hoje tem festa no morro
E "os gringos" vão lá pra ver
Botam os pretos pra batucar
Fazem as negrinhas mexer
E "os gringos" gostam
Do jeito que o negro tem
Chamam os pretos de “artista”
E as negrinhas de “meu bem”
Tiram fotos dos pretos
Dançam ao som do timbal
Sorriem nas favelas e becos
Na festa todo mundo é igual
E "os gringos" gostam
Do jeito que o negro tem

Mas quando a festa acaba
A utopia é desmascarada
O gringo desce do morro
E o preto volta a ser ninguém.

20/11/09 – Celly Grapiuna